DA NOITE DE SÁBADO
Jornais da oposição se unem e convocam a população
para prestigiar a reunião da Liga contra a Vacina Obrigatória, no CCO, nesta
noite de sábado. O governo toma providências para tentar conter protestos. Prepara
cartazes e encartes de jornais avisando que a polícia agirá contra quem tentar
obstaculizar o livre exercício do poder político.
Anoitece. De uma janela do Ministério da Justiça,
Theodoro avista o fluxo de gente que se dirige ao CCO. Seabra está ao seu lado
e, abeirados da outra janela, estão Silva Castro e o general Piragibe, chefe da
Brigada da Polícia.
-- Um bando de desocupados mazorqueiros. Poria todos
pra correr, fala o general.
-- Para quê acender o barril de pólvora? – pergunta
Seabra.
-- Pelo menos por aqui economizaríamos no
bota-abaixo.
O comentário de Theodoro provoca risadas.
-- Por falar nisso, alguém sabe dizer quando expira
o habeas corpus de Pietro?
-- Agora em dezembro, responde Seabra. Mas esteja
certo de que ele tem seus capoeiristas a proteger a propriedade até lá.
-- O delegado Barroso que o diga, exclama Silva
Castro.
Outras troças desanuviam a tensão
Algum tempo depois, no CCO, Lauro Sodré já discursa,
ao lado de Barbosa Lima e de Vicente de Souza para uma enorme plateia.
-- Só um governo
de fazendeiros poderia rasgar a constituição republicana e decretar a vacina
obrigatória. Um bando de corruptos, de foras da lei, de imorais, que se propõe
a invadir a propriedade privada, obrigando esposas, filhas e mães da pátria a
se desnudarem para o aviltamento do seu despotismo sanitário.
Herculano observa
o público ali reunido, ávido por mudanças. Personifica o atendimento desse
anseio num governante capaz de derrotar oportunismos vorazes, que impedem a
alocação de dinheiro caro e escasso para solucionar problemas e realizar
melhorias. A vontade de ser esse governante, de conduzir a sociedade brasileira
para um patamar de progresso que ela jamais imaginou que pudesse um dia galgar,
ameniza a dor da traição da mulher. Outro balsamo é a percepção do discurso
vazio de Sodré. Fala muito de direitos expropriados, mas não apela mais para a
legítima defesa com arma à mão. Os discursos seguintes também não mencionam a
revolução salvadora e repetem pedidos de resistência prudente ao governo. Fracos, sentencia.
Sessão
encerrada, o público se organiza para marchar até o Palácio do Catete em
repúdio a vacina. Divina surge no meio dessa
movimentação e se apresenta ao Capitão, que se retesa quando ela tira um galho de
arruda de dentro da sua sacola.
-- Bendito seja Deus e os orixás que adestram vossas
mãos para a batalha, que põem suas falanges ao vosso auxílio, que abrem seus
caminhos para a vitória...
As palavras da benzedeira vencem a vergonha e tocam
as emoções trancadas no peito. Para Herculano não é mais Divina quem está
diante dele e sim República. O ramo já se tornou a espada com que a Soberana do
Povo o sagra como o homem da Pátria: o predestinado a representá-la na luta
diária contra a consciência da impunidade e a cumplicidade imoral que acharcam os recursos da
Pátria e recrudescem as contradições sociais, num atraso perverso da marcha
evolutiva da coletividade.
Herculano
abaixa a fronte, mas em espírito dobra o joelho e reitera para si a mais
irrestrita obediência àquela que representa a missão que enunciou para a sua
vida. Depois é a partida. Entre
solavancos de movimentações eufóricas, Divina vê o Capitão se afastar da Praça
Tiradentes com a multidão. Sente uma pontada funda no peito. Ó meu Pai, eu vos peço, proteja a todos.
-- A turba tá indo pro Palácio, avisa um funcionário
na sala do Ministro da Justiça.
Theodoro se vira para Seabra e subverte a
hierarquia.
-- Avise o presidente e mande reforçar as sentinelas
no Palácio.
-- Rápido, vá à casa do Marechal Argolo e o traga
aqui, diz o general Piragibe para o informante.
Seabra tenta falar ao telefone. Exacerba-se:
-- Mais vale um cavalo que essa porcaria. Não
funciona.
Convocam-se mensageiros e mensagens são levadas em
carreira. Finalmente o telefone funciona e ordens são transmitidas. O ministro
da Guerra chega. Inteira-se das medidas tomadas e todos partem para o Palácio
do Catete.
A manifestação serpenteia pelas ruas do centro da
cidade. Inseguranças à parte, Brito compareceu à sessão do CCO e acompanha o
deslocamento com Herculano. São os únicos dos conspiradores ali. Diante do
Palácio do Catete, os manifestantes se encontram com a cavalaria e bradam:
-- Morra a vacina! Viva a liberdade de escolha!
Salve o Exército brasileiro!
A hora passa com os motes repetidos e os pedidos de
dispersão do chefe da Guarda do Palácio. Começa a marcha de volta. Brito se
despede do colega e segue junto com a multidão. Pouco a pouco, a calmaria se
faz na Rua do Catete e Herculano parte.
As autoridades permanecem no Palácio à espera da
confirmação do término da passeata. Um primeiro informe relata que a multidão
parou na frente da casa de Varela e da janela o político pediu a dispersão
porque ainda não era a hora da desforra.
-- Estamos preparados para manter a ordem civil,
afirma Argolo.
Theodoro antecipa temas ainda confidenciais.
-- Acho melhor o senhor suspender a parada militar
de terça-feira.
O ministro da Guerra pensa nos brios da corporação.
-- Ouvirei o Presidente sobre a conveniência da
sugestão.
-- Ouça-o também sobre a conveniência de ações
preventivas dentro do próprio Exército e das Escolas Militares.
Um silêncio pesado se faz. Novo mensageiro irrompe porta adentro.
-- Alvejaram o carro do general Piragibe e o piquete
descarregou na população.
-- Mortos?
-- Não sei dizer, senhor.
Theodoro pensa em mandar Catarina para Petrópolis e
põe a questão de lado quando as portas do gabinete presidencial se abrem para
tomadas de decisão.
A noite prossegue carregada de tensão.
No corredor do casarão de Botafogo, Herculano surge.
Descalço, descomposto, seus olhos dardejam tormentas. Refugia-se na biblioteca
com a memória da violência com que possui a mulher. Tantos desejos proibidos, tanto ardor contido para
manter o decoro conjugal e tudo desmoronado de modo vil. A brutalidade como a última
terra lançada sobre o túmulo matrimonial. A lápide escrita à tinta da sevícia.
Consome-se nos destroços de si, na arruinaria do casamento, nas faltas de
Páscoa para criar o acolhimento no qual pudesse se revitalizar para a batalha
do dia seguinte. Suportou a tudo e quando pensou que possuía um lar, quando
rompeu contenções e se deitou no colo da esposa, ao se levantar foi ferido pelo
punhal da traição, que fez vazar seu próprio fel. Por que, se sempre lhe fui fiel? Miserável. Quanto bem eu lhe quis!
A
vergonha o abrasa quando olha República. Ouve ela lhe perguntar: -- Como pôde sorver
o ódio como uma paixão? Deixar a fúria torvar a razão? Urge que se redima
consigo mesmo. Saia desta casa que nunca lhe pertenceu. Retorne para onde tudo
floresceu dentro de você e se fortaleça para o grande momento da sua vida.
Herculano
sai desembestado da biblioteca. Veste sua farda, arruma sua maleta e deixa o
casarão. Ao jardim, encontra-se com Tião na sua ronda. Avisa-o de que estará na
Escola e lhe dá instruções.
--
Amanhã terá a vigília. Se quiser ir, vá.
-- Não
posso faltar.
--
Então me encontre na Praça e que as ordens sejam cumpridas aqui.
--
Serão, doutor capitão.
Pelas
grades do portão, Herculano avista Correia e Touro se aproximando. Em breve, os
dois lhe relatam sobre o confronto com o piquete. .
-- Brito?
-- Já deve estar longe com os moços no trem pra
Realengo.
-- Alguma baixa?
-- Não da nossa parte.
-- Quem começou os tiros?
-- Num dá pra dizer.
-- Mas a cambada do Pinto de Andrade estava lá.
-- Num triz os sacripantas dos quebra-lampiões
engrossaram o rebuliço.
-- Vamos entrar e repassar o controle das ruas.
-- Não leva mal, Capitão, mas pra onde ia com essa
maleta?
-- Para a caserna onde estarei até a vitória.
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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