segunda-feira, 6 de julho de 2015

Capítulo Centro e Quatorze

DA NOITE DE SÁBADO


Jornais da oposição se unem e convocam a população para prestigiar a reunião da Liga contra a Vacina Obrigatória, no CCO, nesta noite de sábado. O governo toma providências para tentar conter protestos. Prepara cartazes e encartes de jornais avisando que a polícia agirá contra quem tentar obstaculizar o livre exercício do poder político.
Anoitece. De uma janela do Ministério da Justiça, Theodoro avista o fluxo de gente que se dirige ao CCO. Seabra está ao seu lado e, abeirados da outra janela, estão Silva Castro e o general Piragibe, chefe da Brigada da Polícia.
-- Um bando de desocupados mazorqueiros. Poria todos pra correr, fala o general.
-- Para quê acender o barril de pólvora? – pergunta Seabra.
-- Pelo menos por aqui economizaríamos no bota-abaixo.
O comentário de Theodoro provoca risadas.
-- Por falar nisso, alguém sabe dizer quando expira o habeas corpus de Pietro?
-- Agora em dezembro, responde Seabra. Mas esteja certo de que ele tem seus capoeiristas a proteger a propriedade até lá.
-- O delegado Barroso que o diga, exclama Silva Castro.
Outras troças desanuviam a tensão
Algum tempo depois, no CCO, Lauro Sodré já discursa, ao lado de Barbosa Lima e de Vicente de Souza para uma enorme plateia.
-- Só um governo de fazendeiros poderia rasgar a constituição republicana e decretar a vacina obrigatória. Um bando de corruptos, de foras da lei, de imorais, que se propõe a invadir a propriedade privada, obrigando esposas, filhas e mães da pátria a se desnudarem para o aviltamento do seu despotismo sanitário.
Herculano observa o público ali reunido, ávido por mudanças. Personifica o atendimento desse anseio num governante capaz de derrotar oportunismos vorazes, que impedem a alocação de dinheiro caro e escasso para solucionar problemas e realizar melhorias. A vontade de ser esse governante, de conduzir a sociedade brasileira para um patamar de progresso que ela jamais imaginou que pudesse um dia galgar, ameniza a dor da traição da mulher. Outro balsamo é a percepção do discurso vazio de Sodré. Fala muito de direitos expropriados, mas não apela mais para a legítima defesa com arma à mão. Os discursos seguintes também não mencionam a revolução salvadora e repetem pedidos de resistência prudente ao governo. Fracos, sentencia.  
 Sessão encerrada, o público se organiza para marchar até o Palácio do Catete em repúdio a vacina. Divina surge no meio dessa movimentação e se apresenta ao Capitão, que se retesa quando ela tira um galho de arruda de dentro da sua sacola.  
-- Bendito seja Deus e os orixás que adestram vossas mãos para a batalha, que põem suas falanges ao vosso auxílio, que abrem seus caminhos para a vitória...
As palavras da benzedeira vencem a vergonha e tocam as emoções trancadas no peito. Para Herculano não é mais Divina quem está diante dele e sim República. O ramo já se tornou a espada com que a Soberana do Povo o sagra como o homem da Pátria: o predestinado a representá-la na luta diária contra a consciência da impunidade e a cumplicidade imoral que acharcam os recursos da Pátria e recrudescem as contradições sociais, num atraso perverso da marcha evolutiva da coletividade.
Herculano abaixa a fronte, mas em espírito dobra o joelho e reitera para si a mais irrestrita obediência àquela que representa a missão que enunciou para a sua vida. Depois é a partida. Entre solavancos de movimentações eufóricas, Divina vê o Capitão se afastar da Praça Tiradentes com a multidão. Sente uma pontada funda no peito. Ó meu Pai, eu vos peço, proteja a todos.
-- A turba tá indo pro Palácio, avisa um funcionário na sala do Ministro da Justiça.
Theodoro se vira para Seabra e subverte a hierarquia.
-- Avise o presidente e mande reforçar as sentinelas no Palácio.
-- Rápido, vá à casa do Marechal Argolo e o traga aqui, diz o general Piragibe para o informante.
Seabra tenta falar ao telefone. Exacerba-se:
-- Mais vale um cavalo que essa porcaria. Não funciona.
Convocam-se mensageiros e mensagens são levadas em carreira. Finalmente o telefone funciona e ordens são transmitidas. O ministro da Guerra chega. Inteira-se das medidas tomadas e todos partem para o Palácio do Catete.
A manifestação serpenteia pelas ruas do centro da cidade. Inseguranças à parte, Brito compareceu à sessão do CCO e acompanha o deslocamento com Herculano. São os únicos dos conspiradores ali. Diante do Palácio do Catete, os manifestantes se encontram com a cavalaria e bradam:
-- Morra a vacina! Viva a liberdade de escolha! Salve o Exército brasileiro!
A hora passa com os motes repetidos e os pedidos de dispersão do chefe da Guarda do Palácio. Começa a marcha de volta. Brito se despede do colega e segue junto com a multidão. Pouco a pouco, a calmaria se faz na Rua do Catete e Herculano parte.
As autoridades permanecem no Palácio à espera da confirmação do término da passeata. Um primeiro informe relata que a multidão parou na frente da casa de Varela e da janela o político pediu a dispersão porque ainda não era a hora da desforra.
-- Estamos preparados para manter a ordem civil, afirma Argolo.
Theodoro antecipa temas ainda confidenciais.
-- Acho melhor o senhor suspender a parada militar de terça-feira.
O ministro da Guerra pensa nos brios da corporação.
-- Ouvirei o Presidente sobre a conveniência da sugestão.
-- Ouça-o também sobre a conveniência de ações preventivas dentro do próprio Exército e das Escolas Militares.
Um silêncio pesado se faz.  Novo mensageiro irrompe porta adentro.
-- Alvejaram o carro do general Piragibe e o piquete descarregou na população.
-- Mortos?
-- Não sei dizer, senhor.
Theodoro pensa em mandar Catarina para Petrópolis e põe a questão de lado quando as portas do gabinete presidencial se abrem para tomadas de decisão.
A noite prossegue carregada de tensão.
No corredor do casarão de Botafogo, Herculano surge. Descalço, descomposto, seus olhos dardejam tormentas. Refugia-se na biblioteca com a memória da violência com que possui a mulher. Tantos desejos proibidos, tanto ardor contido para manter o decoro conjugal e tudo desmoronado de modo vil. A brutalidade como a última terra lançada sobre o túmulo matrimonial. A lápide escrita à tinta da sevícia. Consome-se nos destroços de si, na arruinaria do casamento, nas faltas de Páscoa para criar o acolhimento no qual pudesse se revitalizar para a batalha do dia seguinte. Suportou a tudo e quando pensou que possuía um lar, quando rompeu contenções e se deitou no colo da esposa, ao se levantar foi ferido pelo punhal da traição, que fez vazar seu próprio fel. Por que, se sempre lhe fui fiel? Miserável. Quanto bem eu lhe quis!
A vergonha o abrasa quando olha República. Ouve ela lhe perguntar: -- Como pôde sorver o ódio como uma paixão? Deixar a fúria torvar a razão? Urge que se redima consigo mesmo. Saia desta casa que nunca lhe pertenceu. Retorne para onde tudo floresceu dentro de você e se fortaleça para o grande momento da sua vida.
Herculano sai desembestado da biblioteca. Veste sua farda, arruma sua maleta e deixa o casarão. Ao jardim, encontra-se com Tião na sua ronda. Avisa-o de que estará na Escola e lhe dá instruções.
-- Amanhã terá a vigília. Se quiser ir, vá.
-- Não posso faltar.
-- Então me encontre na Praça e que as ordens sejam cumpridas aqui.
-- Serão, doutor capitão.
Pelas grades do portão, Herculano avista Correia e Touro se aproximando. Em breve, os dois lhe relatam sobre o confronto com o piquete. .
-- Brito?
-- Já deve estar longe com os moços no trem pra Realengo.
-- Alguma baixa?
-- Não da nossa parte.
-- Quem começou os tiros?
-- Num dá pra dizer.
-- Mas a cambada do Pinto de Andrade estava lá.
-- Num triz os sacripantas dos quebra-lampiões engrossaram o rebuliço.
-- Vamos entrar e repassar o controle das ruas.
-- Não leva mal, Capitão, mas pra onde ia com essa maleta?
-- Para a caserna onde estarei até a vitória.

 Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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