segunda-feira, 13 de julho de 2015

Capítulo Cento e Vinte e Sete

UM POUCO DE CADA UM


É madrugada alta, quando Valentin sai de um bar. Caminha em passos trôpegos e remói a culpa de ter caído na farsa montada por Catarina e Theodoro. -- Fui um otário, diz. Penetra a Santa Luzia escurecida também pelas copas dos tamarindeiros e flamboyants. De repente, um tiro alveja a sua cabeça. Tomba. Um homem se aproxima, atira novamente e corre.
              
        Catarina folheia o caderno de viagem do morto. O filho dorme ao lado, no conforto de uma cesta. O assassinato suspendeu a viagem para a fazenda e as investigações estão a cargo de Silva Castro. Theodoro providenciou o enterro e despachou os pertences do amigo para a casa do pai dele, em Portugal, sem saber que ela reteve aquela lembrança.
 Uma lágrima cai e borra a página lida. Enxuga a página com um lenço. Fecha o caderno e aninha o filho no colo. Imagina o céu de opala descrito no diário; à luz desse brilho, pensa no dia em que entrará no Palácio do Catete com César Augusto e como a esposa do novo presidente do Brasil. Exibe um novo berloque na corrente que usa. Na peça em formato de coração, as letras iniciais do seu nome e do marido entrelaçam-se grafadas em diminutos brilhantes.

Ninon lê o cartão de participação do nascimento de César Augusto. Coitado do Valentin! Deveria ter se chamado Inocêncio, pensa. Depois, retira-se para supervisionar o ensaio da comédia musical “Boas Festas” que as suas pupilas apresentarão logo mais no palco da Casa Rosada.

O julgamento íntimo de Abreu Vaz se conclui com sentença favorável a ele. Despacha as filhas para suas residências e vai atrás do seu elixir no L’ Onde Bleue. Neste instante, acaba de pedir Mariinha em casamento.
-- Aceitas?
-- Sim, meu ioiô. Ó, como sou feliz!

Os sinos da igreja badalam a meia-noite. Expira o mandato judicial que garantia o funcionamento da Maison Moderne. Duzentos homens com marretas e picaretas começam a demolição. O prefeito assiste ao bota-abaixo, em companhia de Barroso e de Raposo. Ao raiar da alva, a antiga casa de diversão de Pietro já não mais existe.

Euclides desembarca na cidade, ainda atônito com a morte de Herculano. Jamais supôs que o colega se lançasse num ato temerário como aquele. Visita Páscoa, oferece seus préstimos e lhe pede que escreva para sua esposa, Ana Emília, sempre que precisar, enquanto ele estiver na Amazônia.
-- Saninha saberá me localizar e a quem acionar em caso de ajuda imediata.
-- Muito agradecida.
-- Faço questão. Tem uma pena e um papel?
-- Por favor, me acompanhe.
Dirigem-se à biblioteca. Euclides encanta-se com o quadro na parede.
-- A República!
Páscoa observa o mesmo ar embevecido que tantas vezes viu no marido. Ouve-o discorrer sobre a beleza da imagem que inspirou o ideal republicano de muitos. Entende como se livrar daquela presença.
-- Quero que fique com o quadro.
-- É muito gentil, mas não sei se posso aceitar tamanha deferência.
-- Essa seria a vontade de Herculano. Posso enviá-lo para sua residência.
Euclides aceita o presente por mera delicadeza, sem compreender como a viúva se afasta de algo que foi tão caro ao marido. A treze de dezembro, embarca do Pharoux, à testa da expedição de demarcação das fronteiras do Acre com o Peru e a Bolívia.

Alguns dias depois. A publicação de um decreto do governo federal exaspera Ernesto. Discute a questão com Theodoro e sentencia.
-- Agora sim a Corrente se inviabiliza.
-- Vamos desembaraçar esse cipoal. Não vê que a eletricidade está na nossa mão?  
-- O prazo herdado não deixa, a menos que Deus diga de novo faça-se a luz. 
-- Dirá. Não há como puxar linhas de transmissão sem desapropriações.
-- Seja realista. O governo não dormirá no ponto.
-- Acontece que funcionários se confundem, documentos se perdem. Outros são esquecidos dentro das gavetas. Não sendo um problema nosso, é causa ganha.
-- Não conseguirá molhar a mão de tanta gente.
-- Aposto a minha participação que sim. E você, o que aposta?
-- Não sou um jogador, Theodoro.

Este caderno esteve prudentemente escondido trinta dias. Não fui ameaçado, mas temo sobremodo a violência dos governos do Brasil. Inocentes vagabundos são recolhidos na Ilha das Cobras, surrados e mandados para o Acre. Um progresso! Até aqui se fazia isso sem ser preciso estado de sítio; o Brasil já estava habituado a essa história. Durante quatrocentos anos não se fez outra coisa pelo Brasil. Creio que se modificará o nome: estado de sítio passará a ser estado de fazenda. De sítio para fazenda, há sempre um aumento, pelo menos no número de escravos. Profecia: dos militares, mais ou menos envolvidos nas mazorcas, nenhum sofrerá pena; dos civis, alguns se suicidarão na prisão. Essa rebelião teve grandes vantagens: 1) demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendê-la com armas na mão; 2) diminuir um pouco o fetichismo da farda; 3) desmoralizar a Escola Militar, escreve Lima Barreto.
  
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos




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