A SOBERANA DO TEU DESEJO
Quando te vi entrar carregado, pensei: de novo outra
troca do destino. Não amaldiçoei minha sina, nem me joguei ao teu corpo.
Paralisada, te odiei por ter amado mais a República do que a mim. Também não te
banhei nem acariciei o teu corpo, que tanto desejei que me possuísse com ardor.
Tampouco te vesti com a tua farda de gala, que por várias vezes abracei, nem te
deitei nesse caixão e te cobri de flores, com o desespero das viúvas amadas.
Nada fiz até para não sentir o frio da tua carne inerte e apagar da memória o
calor da rigidez que sempre te habitou. Apenas acompanhei ato por ato o último
desvelo a ti enquanto sentia a dor de te entender morto e sofria a dos anos em
que me fizeste acreditar que eu era o problema das nossas vidas. Mais uma vez,
ouvi meus apelos de criarmos nosso mundo com menos regras. E te revi inquebrantável, dono de tuas emoções e certezas. O esteio duro, áspero e mudo
que esperou que eu aconchegasse. Como acolher um austero? Revitalizar um
esquivo? Nutrir um inapetente do meu prazer? A soberana do teu desejo nunca fui
eu. Falhamos. Traímos um ao outro e cada
qual ao seu modo. Porém como te esquecer? Como deixar de reconhecer nesse vazio
derradeiro o teu hábito de me largar sozinha quando te convinha? Mas não te enganes. Não foram em vão minhas angústias nem as dores que causei e senti. Do
chão enlodado da minha solidão, me impulsionei, e do prazer vivido na minha
transgressão, descobri que posso ser dona de mim. Tenho forças para pagar essa
cara liberdade. Morreste por quem mais amou, sem concessões a ninguém. Enterras contigo parte dessa verdade; a
outra parte é o luto que carregarei como a memória das nossas mútuas incapacidades.
Ocorre uma golfada de emoção e Páscoa chora
compulsivamente, sozinha, ao lado do caixão de Herculano, na biblioteca
iluminada a velas. O sono rendeu Quitéria, Tião, Belizária e Sofia ao longo da
madrugada. Com exceção de Maria Luíza, José Inácio e empregadas, ninguém mais
velou o capitão. Prisões, perdas pessoais e a revolta ainda em curso nas ruas
impediram manifestações de apreço ao finado.
O enterro também acontece somente com a presença de
poucos. Grego assiste de longe a cerimônia, após ter deixado no casarão um
cartão de pêsames: penso em como estão e
em como posso confortá-las. Meus sentimentos. Outra presença despercebida é
Divina. Aproxima-se do túmulo já solitário. Descanse
em paz, Capitão.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário