sábado, 11 de julho de 2015

Capítulo Cento e Vinte e Cinco

A SOBERANA DO TEU DESEJO


Quando te vi entrar carregado, pensei: de novo outra troca do destino. Não amaldiçoei minha sina, nem me joguei ao teu corpo. Paralisada, te odiei por ter amado mais a República do que a mim. Também não te banhei nem acariciei o teu corpo, que tanto desejei que me possuísse com ardor. Tampouco te vesti com a tua farda de gala, que por várias vezes abracei, nem te deitei nesse caixão e te cobri de flores, com o desespero das viúvas amadas. Nada fiz até para não sentir o frio da tua carne inerte e apagar da memória o calor da rigidez que sempre te habitou. Apenas acompanhei ato por ato o último desvelo a ti enquanto sentia a dor de te entender morto e sofria a dos anos em que me fizeste acreditar que eu era o problema das nossas vidas. Mais uma vez, ouvi meus apelos de criarmos nosso mundo com menos regras. E te revi inquebrantável, dono de tuas emoções e certezas. O esteio duro, áspero e mudo que esperou que eu aconchegasse. Como acolher um austero? Revitalizar um esquivo? Nutrir um inapetente do meu prazer? A soberana do teu desejo nunca fui eu. Falhamos.  Traímos um ao outro e cada qual ao seu modo. Porém como te esquecer? Como deixar de reconhecer nesse vazio derradeiro o teu hábito de me largar sozinha quando te convinha? Mas não te enganes. Não foram em vão minhas angústias nem as dores que causei e senti. Do chão enlodado da minha solidão, me impulsionei, e do prazer vivido na minha transgressão, descobri que posso ser dona de mim. Tenho forças para pagar essa cara liberdade. Morreste por quem mais amou, sem concessões a ninguém. Enterras contigo parte dessa verdade; a outra parte é o luto que carregarei como a memória das nossas mútuas incapacidades.
Ocorre uma golfada de emoção e Páscoa chora compulsivamente, sozinha, ao lado do caixão de Herculano, na biblioteca iluminada a velas. O sono rendeu Quitéria, Tião, Belizária e Sofia ao longo da madrugada. Com exceção de Maria Luíza, José Inácio e empregadas, ninguém mais velou o capitão. Prisões, perdas pessoais e a revolta ainda em curso nas ruas impediram manifestações de apreço ao finado.
O enterro também acontece somente com a presença de poucos. Grego assiste de longe a cerimônia, após ter deixado no casarão um cartão de pêsames: penso em como estão e em como posso confortá-las. Meus sentimentos. Outra presença despercebida é Divina. Aproxima-se do túmulo já solitário. Descanse em paz, Capitão

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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